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Eu, David Bronstein

Houve um jogador de xadrez que figurou entre os melhores do mundo nos anos pós guerra. Seu nome era David Bronstein.

Este genial ucraniano de mente complexa e pensamento inquieto tinha uma estranha característica: jogava melhor sob pressão. Na verdade jogava muito melhor, sob pressão. Então o que ele fazia? Colocava a si mesmo nesta situação, deliberadamente.

Ele deixava propositalmente o relógio correr em partidas de torneio para ficar com menos tempo que o adversário e então fazia seus lances sob a pressão inexorável do tempo acabando. Assim ele conseguia seus melhores planos de jogo e sua genialidade produzia verdadeiras pérolas do intelecto humano naquele tabuleiro de madeira.

Eu rabisquei o nome dele no início da folha do pequeno caderno de anotações, quase ao mesmo tempo em que sinalizei para que o garçom trouxesse outra dose. A dose veio, e no mesmo instante uma mulher sentou ao meu lado, debruçando-se no balcão e sussurrando ao garçom por um Martíni.

Pôs os olhos em meu caderno de anotações mais rápido do que eu consegui fecha-lo.

“É seu nome?”
“O quê?”
“Esse é o seu nome, David Bronstein?”

Resolvi deixar o equívoco virar verdade. Achei divertida a ideia de usar este nome numa noite de quarta-feira após o dia inteiro enfiado no escritório trabalhando sem ver a luz de um dia chuvoso. Que mal podia haver nisso?

“Sim, é o que diz minha certidão de nascimento…”

Então teve início todo aquele ritual que os solitários, eremitas e peregrinos de metrópoles já conhecem. Sorrisos inventados, decepções camufladas de aprendizado e recicladas numa conversa de dois estranhos que controlam seus vícios em celulares enquanto conversam e pedem novas doses ao esvaziar dos copos.

Um pragmatismo cínico na verdade, porque já sabemos exatamente como termina a história e até mesmo poderíamos fazer uma previsão como se fôssemos um vidente charlatão.

Aquela moça elegante e educada conversou a noite inteira com David Bronstein. Sorriu e flertou, gesticulou, ouviu, falou, levantou para ir ao banheiro olhar o celular por lá e bebeu tantos martínis quanto sua boa educação permitiu. As mãos se tocaram algumas vezes durante a animada e cínica conversa, e os olhos acompanharam atentos nos momentos em que os lábios falavam de maneira sensual e cenográfica, seduzindo.

Mas então Bronstein precisava agora agir, porque o tempo já havia corrido e ele precisava fazer seu lance. Já haviam cadeiras empilhadas, silêncio e um bar querendo fechar.

E Bronstein decidiu que naquele dia não haveria partida a ser jogada. Seriam ali poupados do tormento que se seguiria com os tradicionais lances de conquista, amor e decepções. Seriam os dois liberados para seguir o curso de suas vidas e buscar novas e sinceras decepções, mas não naquele dia. Assim ele decidiu.

Deixou o relógio zerar sem fazer seu lance, e viu o torneio acabar sem ter jogado. Fomos embora, cada um para sua casa sem beijos, nem telefones.

Então no dia seguinte eu estava lá novamente com meu caderno anotando ideias soltas para depois conectá-las, formando algo que pudesse ser chamado de texto e que me rendesse algum dinheiro.

Apesar de usurpar o nome do grande enxadrista por uma noite, eu não tinha os mesmos hábitos que ele, de fato. Não conseguia repetir sua genialidade e originalidade nos lances do tabuleiro em meus textos e até mesmo na escolha dos lugares onde me refugiava para escrever. Então eu apenas repetia lugares e clichês.

Definitivamente eu não era David Bronstein.

Subitamente ouvi novamente a voz ao meu lado, sussurrando quase musicalmente o pedido de um Martíni. Não olhei, mas pelo perfume pude me certificar de que era ela, a executiva-sonhadora-inteligente-gostosa-insegura.

Eu não podia acreditar que estávamos ali novamente.

Eu não havia feito sequer um único esforço, além de recitar arremedos de textos que não eram meus – dando crédito aos autores, importante dizer. Falei sobre política na América Latina com a ingenuidade de um adolescente que ignora as engrenagens do mundo real. Falei sobre meu cachorro que nunca teve nome e toda semana eu o chamava por um nome diferente, e outras coisas desinteressantes sem muito nexo.

“Ela voltou atrás do quê?”. Pensei.

Mas o fato é que havia voltado e estava ali com um lindo sorriso para mim e um olhar que derramava sinceridade de uma forma que nunca vi.

Conversamos, nos beijamos, falamos bobagens frívolas a noite toda e combinamos de voltar ali no dia seguinte.

“Hoje não! Vamos construir uma coisa legal, alguma coisa que não seja efêmera. Amanhã será nosso dia”. Ela disse quando eu sugeri irmos para a minha casa. E então ficou combinado assim: no dia seguinte. O famigerado dia seguinte, apartado do agora por algumas horas, como um rio revolto guarda a entrada de um palácio. Na travessia daquelas horas assim como no rio turbulento, tudo pode acontecer.

Fui para casa e teve início um processo que eu já conhecia muito bem. Uma visita que sempre batia à minha porta, nas horas mais impróprias. Uma moça traiçoeira que aparecia quando queria, mas nunca quando eu realmente precisava. Uma menina chamada racionalidade, trazendo os pensamentos assertivos do caos que viria no tal dia seguinte e na semana seguinte e também na década seguinte.

Então não houve dia seguinte, não houve início de nada, nem história nenhuma com a incrível mulher.

Dei por encerrado assim nosso caso, e para atenuar o sofrimento escrevi sobre o que poderia ter sido o maior amor do mundo. Um texto que por mais piegas que tivesse ficado ganhou bom destaque, elogios e foi publicado.

Nunca mais a vi, e em tempos de redes sociais um nome falso pode ser uma barreira intransponível para se achar alguém. Ela não acharia nenhum David Bronstein além de um nome em campeonatos mundiais de xadrez em décadas anteriores.

Nossos únicos registros seriam nossas lembranças e um texto perdido em uma revista eletrônica, com pseudônimos que tornariam invisíveis seus dois protagonistas sonhadores.

    Fabricio

2 comentários
  1. Cláudia

    Parabéns!
    Você escreve muito bem.
    Me senti dentro da sua história .
    As palavras fluem em frases bem escritas demonstrando os seus mais profundos sentimentos escondidos na sua alma

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