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Dela

Dela

A ela pertenciam todos, tudo.

Adquiriu a gosto por viajar quando ainda pequena, porque teve que mudar-se muitas vezes por conta da profissão do pai, e com isso conheceu muitos lugares. Quando adolescente gostava de dizer que não sabia qual era a melhor cidade do mundo, porque não conhecia todas, ainda – colocava sempre uma ênfase pretensiosa no “ainda”.

Sua mãe a colocou no balé e após um ano quis sair. Depois disto fez natação e também após um ano abandonou, como também abandonaria após o mesmo tempo o curso de cerâmica e as aulas de vela.

Estabeleceu para si esse tempo limite para as coisas. Um ano.

Estranhamente esta regra passou a funcionar também para relacionamentos. Nada premeditado – nada era planejado em sua vida – e aparentemente todos os seus casos pareciam perder a validade com o mesmo espaço de tempo. Era um acordo tácito que era fizera consigo mesma, sem alarde.

Assim foi com Marcus, um engenheiro fracassado obcecado por controle e planejamento pessoal que anotava e registrava quase tudo em planilhas. Quando o conheceu ela era ainda muito jovem e ele foi seu primeiro relacionamento, seu primeiro tudo. Perdeu com ele o medo de muitas coisas, mas adquiriu raiva de controle e planejamento, talvez porque ele levasse estas coisas a um nível quase patológico. Quando o prazo de um ano chegou ao fim, bateu a porta após deletar todas as malditas planilhas e rasgar todos os seus bilhetes com lembretes patéticos colados estrategicamente. Deletou, rasgou, xingou e saiu para nunca mais voltar.

Havia isso também: ela não voltava depois que saía, nunca.

Então veio Bertrand, um professor de filosofia com quem viveu uma paixão avassaladora e tóxica, nascida na primeira aula do primeiro dia de curso. Olharam-se e apaixonaram-se no primeiro contato visual, e beijaram-se, amaram-se, sorveram até a última gota um do outro até o ciúme destruir tudo de maneira rápida e inexoravel como um câncer corrói um corpo frágil. Antes que a validade chegasse ao fim ela sofreu com a verdade desconfortável de Nietzsche, flertou com Kant e amou tanto os textos de Sartre que colocou alguns em quadros e deixou pela casa. Adquiriu uma visão de vida mais simples, graças à influência do professor e isso a ajudou a superar a morte dos pais, pouco antes do término deste relacionamento.

Quando acabou ela bateu a porta mais uma vez, e com altivez decidiu retomar a rotina de viagens e a vida nômade talvez como uma homenagem velada e inconsciente ao seu pai.

Deu início a uma longa caminhada apenas de ida. Desfez-se dos bens e organizou suas finanças com a pequena herança, riu sozinha olhando para a xícara de café enquanto fazia anotações de valores num papel, porque lembrou rapidamente do seu primeiro amor, o louco obsessivo por organização.

Trocou uma casa charmosa, uma cerca viva e um jardim bem cuidado por um cheque com alguns zeros e então dessa vez bateu sua própria porta, para nunca mais voltar.

– Fabricio